segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A literatura e o Reino de Deus

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O paralelo entre a Casa de Deus e o Reino de Deus fica evidente por si só. Os momentos fugazes de profunda espiritualidade, em que respiramos o oxigênio da Casa de Deus, prenunciam a casa definitiva do Pai. Da mesma forma, as experiências do Reino de Deus, “que já está entre nós”, apontam para o Reino que jamais terá fim. De um lado, durante a caminhada terrestre, pequenas luzes vão revelando o grande dia da iluminação total; de outro, a expectativa de habitar finalmente a “morada que nos está reservada”, como que dá asas aos nossos pés. Vale aqui ouvir a voz de Santo Agostinho, em seus sermões do século V: “Como será feliz lá o Aleluia! Quanta segurança, nada de adverso, onde ninguém será inimigo, não morre nenhum amigo. Lá, louvores a Deus; aqui, louvores a Deus. Mas aqui apreensivos; lá, tranqüilos. Aqui, dos que hão de morrer; lá, dos que para sempre hão de viver. Aqui, na esperança; lá, na bem-aventurança. Aqui, no caminho; lá, na pátria”.

Um rápido sobrevôo pela literatura bastaria para dar-nos conta de como o viajante anseia pelo porto seguro. Tomemos apenas três dos tantos exemplos que existem. O poeta Fernando Pessoa, cantando as glórias de sua pátria, assim se exprime: “Ó mar salgado / quanto de teu sal / são lágrimas de Portugal? / Por te cruzarmos, quantas mães choraram / quantos filhos em vão rezaram / quantas noivas ficaram por casar / para que fosse nosso, ó mar! / Valeu a pena? / Tudo vale a pena se a alma não é pequena. / Quem quer passar além da dor, tem que passar além do Bojador! / Deus ao mar o perigo e o abismo deu / mas nele é que espelhou o céu”. Em outra ocasião, o mesmo poeta irá registrar um epitáfio que caberia no túmulo de todo viajante: “Para ser grande sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê tudo em cada coisa. Põe tudo quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. A travessia deste deserto terrestre, ou “deste vale de lágrimas”, exige enquanto dura total dedicação. Mas nem isso dá a certeza do sucesso. Apenas o consolo de que o esforço, quanto inteiro, vale a pena.

Um segundo exemplo poderia ser extraído da Ilíada e da Odisséia de Homero, por uma parte, e da Eneida de Virgílio, por outra. Após as infindas batalhas e a vitória final sobre Troya, os guerreiros gregos iniciam o caminho de retorno. Há anos fora de casa e da pátria, a ânsia pela terra que os viu nascer é o vento que faz mover suas naves. Porém Ulisses, o “guerreiro dos muitos ardis” se vê prisioneiro de uma deusa. Esta retarda sua volta e o faz errar por longos anos por mar e terra. O caminho torna-se interminável, o herói se vê exposto a mil perigos. Temendo ser enfeitiçado pelo canto da sereia, faz-se amarrar ao mastro da nave. O seu desejo de rever a casa e pátria é mais forte que todos os apelos e seduções. Por fim, depois de tantas idas e vindas, de inúmeras tempestades e da perda de quase todos os amigos, o errante Ulisses reconquista sua esposa Penélope e seu solo pátrio, Ítaca.

Também Enéias, do lado dos troyanos, reúne os vencidos e lança-se a uma aventura por mares e terras. A exemplo de Ulisses, aguardam-lhe ainda maiores perigos, obstáculos e tempestades. De fato, enquanto aquele retornava ao próprio reino, este terá de conquistar seu reino em terra estrangeira. Nas costas da África, por pouco não se deixa prender pelos encantos do amor. Advertido pelos deuses, prossegue viagem, pois lhe espera o desafio e a grandeza de reconstruir Troya nas terras da Itália, à beira do rio Tibre. Segue o caminho, mas terá de enfrentar inimigos ferozes para erguer uma casa, uma terra e uma cidade a que possa chamar de pátria. Nada menos que a futura e grandiosa Roma.

Tanto a Ulisses quanto a Enéias, a casa ou pátria definitiva lhes exigiram energias que eles sequer desconfiavam possuir. Em outras palavras, nossa curta e efêmera caminhada pela face da terra pressupõe forças que o peregrino ignora onde buscar. Mas quando este se abre à vontade dos deuses, no caso de Ulisses, ou à vontade do Espírito de Deus, no caso do místico em sua espiritualidade, a graça passa a acompanhá-lo. É o que faz o apóstolo Paulo constatar que, três vezes feito o pedido para que lhe fosse afastado o “espinho da carne”, este é condição de seu sucesso: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo seu poder” (2Cor 12,1-10).

O terceiro exemplo vem do realismo mágico, tão marcante na literatura latino-americana. A grande obra de Gabriel García Marques, Cien años de soledad, retrata a saga da família Buendía ao longo de todo um século. Não faltam avanços e recuos, reveses sociais e políticos, dilaceramentos familiares, tribulações de todo gênero. A marca registrada do romance, porém, é a infinita solidão do ser humano em sua passagem fugaz pela existência terrestre. Solidão que se revela nas horas mais dolorosas, nas situações-limite, nos momentos de desespero, em que cada um é deixado à própria sorte. A história, qual um gigantesco trator impiedoso, atropela os desejos e temores individuais. Em sua fúria de ir sempre adiante, com a velocidade e o ritmo dos tempos modernos, vai deixando à margem da vida e da estrada os próprios atores que lhe traçam o destino. A cruz coletiva passa de roldão sobre as cruzes pessoais, desconhecendo que uma e outras se mesclam e se entrelaçam. Ao final da obra, a fadiga secular dos principais representantes dos Buendía se revela vã e estéril para as mudanças necessárias e urgentes. Em meio a um deserto de desconhecidos, resta apenas um século de solidão! Não se trata, entretanto, de uma solidão desesperançada e pessimista. Sobram, vivos e imortais, a resistência e a teimosia de um povo que não se deixa dobrar.

Uma metáfora dos três casos acima é o Caminho de Santiago de Compostela. O trajeto tem centenas de quilômetros e é penoso, mas está equipado com pequenos pontos de descanso, os quais lembram um final bem sucedido. Se é verdade que “o caminho se faz caminhando”, também é certo que o caminhante anseia por um porto de chegada, uma casa, uma pátria. Casa/pátria e caminho constituem duas faces da mesma moeda, duas dimensões do destino humano. A certeza da primeira faz redobrar os esforços durante o segundo. Os combates nas curvas e obstáculos do caminho, por outro lado, se fortalecem com a antevisão do prêmio pela vitória. Além do mais, de uma perspectiva humana, o caminho é longo e imprevisto. Daí a experiência do peregrino: deve estar preparado para toda e qualquer surpresa e carregar na bagagem apenas o essencial para a travessia. Peso demais retarda a chegada e o repouso definitivo. São poucas as coisas de que necessitamos para habitar a casa e a pátria do Pai. Acumular durante a trajetória terrestre prende o coração às sereias sedutoras do caminho. O desapego torna mais transparente a antecipação daquilo que nos aguarda. Numa palavra, casa e pátria começam no caminho.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

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