segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Casa de Deus II

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A Primeira Carta de Pedro é escrita aos “estrangeiros da dispersão” que vivem nas comunidades da Ásia Menor (1Pd 1,1). Nela o apóstolo constata que muitos, por se encontrarem fora da pátria e por serem cristãos, acabam sendo hostilizados e perseguidos. A carta recomenda-lhes: a união e a boa convivência entre vocês é a Casa de Deus. Casa aqui significa uma referência para aqueles que, em terra estranha, se sentem inseguros. O texto sinaliza claramente para a construção solidária da comunidade como lugar de encontro.

Aliás, as primeiras comunidades cristãs não raro nascem a partir da instituição pagã casa/família, não no sentido da família nuclear que hoje conhecemos, mas da família antiga, patriarcal e ampliada, que reunia uma vasta parentela, quase um clã. Cristianizada, essa instituição torna-se, por sua vez, um ponto de referência para os pobres, abandonados, órfãos, viúvas, indefesos, migrantes, entre outros. Tem origem aí a constituição posterior da paróquia. Espaços de encontro voltados para acolher os que se encontram dispersos.

De um ponto de vista espiritual, porém, a expressão Casa de Deus revela uma outra dimensão. Não um templo, um abrigo físico ou mesmo um grupo comunitário, e sim uma relação íntima e prolongada com Deus. É o que se verifica nas freqüentes retiradas de Jesus à montanha, ao deserto ou a um lugar à parte. Essa intimidade profunda com o Pai (Abba) é marcante na trajetória de Jesus. Desde os doze anos, no episódio entre os doutores de Jerusalém, em que Ele responde aos pais que o procuravam ansiosos: “Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai” (Lc 2,41-50), até sua oração no Horto das Oliveiras e suas últimas palavras na cruz. A esse respeito é paradigmática a “oração de Jesus”, no capítulo 17 do Evangelho de João.

Essa relação, à medida que se aprofunda na trajetória mística, leva a respirar um oxigênio novo. Saindo de si e entrando no mistério do amor gratuito e sem limites, muitas ilusões de diluem, se desfazem e se convertem em pó. Fama, sucesso, título, poder, riqueza, modismos, dinheiro, consumo, ter, fazer, produzir – tudo isso aparece como um mundo das aparências, frente à realidade, tão presente e tão inefável, que é o estado de espírito de quem conhece a Casa de Deus. Por outra parte, uma luz até então desconhecida passa a iluminar nossas entranhas mais íntimas, revelando sombras, fragilidades, fraquezas, blocos de gelo, mas também bondade, vontade de caminhar, potencialidades inéditas.

Semelhante estado de espírito pode ser reproduzido em qualquer lugar ou ambiente, desde que o silêncio exterior e interior, ajudem a criar uma atmosfera própria para a oração ou contemplação. Estas, em geral, são constituídas de minutos longos de espera, busca, cansaço e desânimo, por um lado, e, por outro, de segundos de luz em meio à escuridão, ao deserto e ao silêncio de Deus. Momentos únicos e fugazes, mas calorosos e inebriantes, cuja lembrança marca para sempre a alma do peregrino. Passam a figurar como pequenos faróis que, em meio às tempestades de mares bravios, indicam ao nosso frágil barquinho o porto seguro.

O apóstolo Paulo conhecia bem essa sensação de intimidade com Deus e com Cristo. Descreveu-a em muitos de suas cartas. Tomemos, por exemplo, seu testemunho no areópago de Atenas, onde, diante dos deuses gregos, passa a anunciar o “Deus desconhecido”: “Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de nós”. O Deus verdadeiro é sempre desconhecido. Deuses conhecidos são deuses facilmente manipuláveis que, em lugar de interpelar, justificam todas as nossas ações. De resto, em todos os seus escritos Paulo insistirá na idéia de que estar com Deus é respirar um ar novo que liberta da escravidão da lei e conduz a uma vida nova, baseada no amor. “Pois Nele vivemos, nos movemos e existimos”, conclui (At 17,22-28).

Mas o “Deus desconhecido” de Paulo é aquele que nos chama, de novo e sempre, à relação. Faz-se homem para nos conduzir à divindade, desce para nos elevar. É como se nos interpelasse a partir do futuro, para que possamos dar mais um passo à frente “um passo por menor que seja” (diria o escritor norte-americano John Steinbeck). Ou seja, a presença na Casa de Deus impreterivelmente nos devolve ao caminho. Não se trata de um espiritualismo intimista, mas de uma relação com o Pai que reclama uma relação correspondente com os irmãos, especialmente os mais necessitados. E aqui o oxigênio que respiramos na intimidade com Deus representa a força vital que nos irá sustentar na caminhada. Força vital que ajuda a enfrentar obstáculos, fracassos, adversidades, ingratidões, medos, e assim por diante.

Até mesmo uma socióloga marxista, Ágnes Heller, tem algo a nos dizer sobre esse conceito místico de casa. Refere-se a ela como “um ponto fixo no espaço, do qual partir e ao qual voltar”. E acrescenta: “A casa não é simplesmente o edifício, a habitação ou a família (...)”. “É necessário que exista também o sentido da segurança: a casa protege; contribuem, além disso, relações afetivas e sólidas – o calor do lar” (HELLER, Agnes. Sociología de la vida cotidiana, Ediciones Península, Barcelona, España, 1970, pág. 635). Daí a importância do endereço para muitos imigrantes, seja no sentido de ostentá-lo com orgulho depois de conseguir a cidadania, seja no sentido de ocultá-lo com receio em situação de clandestinidade.

Em outras palavras, prevalece a noção de casa simultaneamente como ponto de partida e ponto de chegada. A divindade desconhecida nos chama a contemplar sua face e a respirar de sua presença na Casa de Deus, mas, ao mesmo tempo, nos envia a reproduzir essas relações novas na convivência cotidiana, seja no encontro pessoal, familiar ou comunitário, seja em termos econômicos, políticos e sociais.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

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